Neusa Santos Souza, presente!

Imagem com fundo lilás e colagem de foto da psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, sorrindo, à esquerda. À direita, há um balão de fala cinza, com borda azul clara, contendo uma citação dela em letras pretas: “Uma das formas de exercer a autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo”. Abaixo do balão, está escrito “NEUSA SANTOS”, em letra rosa.

Neusa Santos Souza marcou a história da saúde mental no Brasil, porque foi a primeira pessoa a apresentar cientificamente os impactos negativos do racismo na saúde mental da população negra, além de estratégias para superá-los através do fortalecimento da identidade negra. Médica psiquiatra, psicanalista e escritora, Neusa Santos também praticava atividades de ensino na área da saúde mental, e, ainda hoje, é uma das maiores referências na luta antirracista. Imagine o quanto se dedicou e quantos desafios enfrentou para conseguir inaugurar tantos debates e abrir tantos caminhos! Foi uma exceção dentro do seu contexto social: uma mulher negra que nasceu, em 1948, na cidade de Cachoeira, na Bahia, e cursou medicina, em Salvador, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), mesma faculdade em que anos antes estudou o médico psiquiatra negro Juliano Moreira que nós da Casa da Ciência temos sempre o prazer de lembrar.

Muito decidida, Neusa Santos já sabia que queria seguir pelo caminho da psiquiatria, desde que ingressou na graduação de medicina. Então, quando se mudou para a cidade do Rio de Janeiro, na década de 1970, entrou para o mestrado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, o IPUB, localizado em um prédio vizinho à Casa da Ciência. O resultado da sua dissertação de mestrado deu origem ao seu famoso livro Tornar-se negro – as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, lançado na década de 1980. Nesse livro, Neusa Santos propõe o que chamou de “discurso do negro sobre o negro”, pois acreditava que apenas essa abordagem permitia compreender as camadas mais profundas da subjetividade em pessoas negras: a emocionalidade. 

Com a sua pesquisa de mestrado, buscou apresentar a experiência de ser uma pessoa negra em uma “sociedade branca” e, para isso, entrevistou pessoas negras que passaram por alguma experiência de ascensão social. No entanto, Neusa Santos não estava afirmando que o Brasil é uma “sociedade branca” no sentido literal, mas sim no sentido simbólico. Na introdução do seu livro, afirma que essa é uma sociedade que possui “classe e ideologia dominantes brancas, estética e comportamentos brancos, exigências e expectativas brancas”. Ela nos mostrou que nem com as experiências de ascensão social as pessoas negras deixam de sofrer o racismo cotidianamente – mesmo o Brasil sendo um país de grande desigualdade social. 

Mas se engana quem pensa que o legado simbólico que Neusa Santos Souza construiu e deixou para a sociedade brasileira se limitou ao debate das relações raciais! Segundo o psicólogo e doutorando em psicologia William Penna, Neusa Santos formulou, ao lado de outros psiquiatras, uma das primeiras experiências da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que logo depois se intensificou e ganhou contornos nacionais. Isso aconteceu quando ela trabalhou no Centro Psiquiátrico Pedro II, local marcado anteriormente pelo importante trabalho de Nise da Silveira, que era mais conhecido como “Engenho de Dentro”, por causa da sua localização nesse bairro carioca. 

Já deu para perceber a grandiosidade das pesquisas e dos trabalhos que Neusa Santos Souza realizou, não é? E ela inspirou e continua inspirando novas produções… Além de William Penna, há hoje importantes contribuições de outras/os cientistas negras/os que lutam para que a memória de Neusa Santos Souza seja contemplada na história da saúde mental no Brasil, dentre as/os quais podemos citar a psicóloga e doutora em psicologia social Clélia Prestes e o psicólogo e mestre em psicologia Lucas Veiga. Mas também não podemos esquecer que, antes desses, há psicólogas negras que seguiram os passos de Neusa Santos e que possuem pesquisa sobre a relação entre racismo e saúde mental, como: Isildinha Baptista Nogueira, que defendeu sua tese de doutorado em psicologia em 1998; Maria Aparecida Silva Bento, que defendeu sua tese de doutorado em psicologia em 2002; e Maria Lúcia da Silva, que, atualmente, coordena a Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(os) de Relações Raciais e Subjetividades (ANPSINEP). 

Também podemos citar a inspiração de coletivos universitários negros com seu nome, como o Coletivo Negro de Psicologia Neusa Santos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Coletivo de Pesquisadoras/es Negras/os Neusa Santos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Além disso, o reconhecimento do seu trabalho em prol da saúde mental está eternizado, desde 2016, em um dos Centros de Atenção Psicossocial de atendimento diário para adultos (CAPS II), na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro: CAPS II Neusa Santos Souza. E nós desejamos que venham mais e mais reconhecimentos!

Pouco tempo antes de seu falecimento, em 2008, Neusa Santos Souza foi entrevistada por Lázaro Ramos e Sandra Almada, para o programa de televisão Espelho. Ao lado dos entrevistadores, lembrou não só da construção do livro Tornar-se negro, mas também da repercussão que continuava tendo, mesmo 25 anos após o seu lançamento: “Naquela época se falava em dar a voz. Hoje não cabe mais isso. Hoje cada um de nós toma a voz, levanta a voz. Isso é um avanço fabuloso. E, sobretudo eu que sou psicanalista, fico muito contente com essa coisa de que o outro possa falar“. Mesmo sendo o último registro do seu pensamento, Neusa Santos nos deixou bem viva a sua missão, que foi devidamente cumprida e abriu caminhos para novos trabalhos dentro e fora da área da saúde mental: “Meu trabalho é, sobretudo isso: criar condições para que cada um afirme sua fala“.


Referências:

[Livro] SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro – as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

[Foto] Que CAPS é esse? Neusa Santos Souza. Boletim da Atenção Psicossocial Carioca – Do manicômio para a cidade. Rio de Janeiro: Rio Prefeitura Saúde, 2018, nº 1, p. 5. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/documents/73801/ad6a6c41-8b70-4775-b5c3-999c359e5f24 

[Biografia] PENNA, William Pereira. Escrevivências das memórias de Neusa Santos Souza: apagamentos e lembranças negras nas práticas psis. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019. Disponível em: https://app.uff.br/slab/uploads/2019_d_WilliamPenna.pdf 

[Biografia] Intérpretes negras do Brasil – Neusa Santos Souza por Clélia Prestes. Centro de Pesquisa e Formação do SESC (vídeo). São Paulo, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bjaaaBM1I54 

[Entrevista] Programa Espelho com Neusa Santos Souza. Direção de Lázaro Ramos e apresentação de Lázaro Ramos e Sandra Almada (vídeo). Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eugWGvhG48o 

[Documentário] Um grito parado no ar. Direção de Leonardo Souza (vídeo). Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V4WHFs8PGm0 

Saiba mais:

Para conhecer as/os demais psicólogas/os e psicanalistas negras/os citados no texto:

[Isildinha Baptista Nogueira] Tese de doutorado (1998): https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/significacoes-do-corpo-negro-isildinha-baptista-nogueira-tese.pdf 

[Maria Aparecida Silva Bento] Tese de doutorado (2002): https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/publico/bento_do_2002.pdf 

[Maria Lucia da Silva] Entrevista em vídeo (2018): https://www.youtube.com/watch?v=ck2kSZJeEDk 

[Clélia Prestes] Tese de doutorado (2018): https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-14112018-184832/publico/prestes_corrigida.pdf 

[Lucas Veiga] Artigo científico (2019): https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000 

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