Você já escreveu um diário? Ou, então, já deixou a caneta fluir livremente no papel, para desabafar o que estava sentindo em determinado momento da sua vida, sem ter a pretensão de mostrar a alguém?
Poder expressar nossos sentimentos através da escrita pode ser uma prática libertadora e muito eficaz para compreender o que se passa em nossa cabeça e em nosso coração. Carolina Maria de Jesus, uma das escritoras mais lidas de todos os tempos no Brasil, nos ensina isso até hoje. Ela nos deixou essa inspiração como herança. E essa herança é valiosa para jovens e adultos brasileiros e pessoas do mundo afora, já que seu livro Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, publicado pela primeira vez em 1960, foi traduzido para 16 idiomas.
Naquele tempo, o racismo e as desigualdades sociais já eram gritantes em nossa sociedade, assim como atualmente, mesmo tantas décadas depois. Carolina Maria de Jesus era uma mulher negra, moradora da favela do Canindé, na cidade de São Paulo, mãe solo de três filhos e catadora de papel. Com a escrita do seu diário, ela nos mostra, ainda hoje, que, independentemente das condições de vida, todos têm o direito de contar sua própria história em primeira pessoa! E, quando lemos livros como os que ela escreveu, conseguimos nos aproximar, pelo menos um pouco, da subjetividade e experiência de vida de quem escreve. Quem sabe esse não é um caminho para desenvolvermos a empatia com pessoas que vivem em realidades diferentes da nossa?
Mesmo passando por muitas privações ao longo da sua vida, Carolina Maria de Jesus criava brechas na dureza do seu dia a dia, para dar vazão aos seus sentimentos pela escrita. Quando lemos seu livro Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, enxergamos, com detalhes, os desafios não só da família da escritora, mas também de milhões de brasileiras e brasileiros: a fome, a falta de saneamento básico e a ausência de recursos materiais para uma vida minimamente confortável são apenas alguns dos desafios relatados.
Exausta de lutar diariamente pela sobrevivência da sua família diante da hostilidade da maior capital do país, Carolina Maria de Jesus teve a coragem de publicar seu diário para denunciar a realidade em que vivia e as muitas tentativas de silenciamento que a cidade impunha sobre a sua existência. Para ela, a escrita era uma ferramenta para compreender tudo o que estava vivenciando, além de se permitir sonhar, como nesse trecho do seu primeiro livro: “Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. […] As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários”.
Já parou para pensar que a realidade relatada por Carolina pode ter sido a mesma de gerações anteriores às nossas próprias famílias ou de famílias muito próximas às nossas? Observamos que, nas últimas décadas, algumas pessoas negras vêm ascendendo socialmente, especialmente com as políticas públicas de ação afirmativa para acesso às universidades. Mas, infelizmente, ainda há inúmeras pessoas nessa situação… Com isso, queremos propor uma reflexão: o fato de conseguirmos ler este post, aqui na Internet, já nos mostra uma parcela dos privilégios que desfrutamos hoje… Mas o que nós podemos fazer com e a partir desses privilégios para mudarmos (mesmo que aos poucos) a realidade do racismo e das desigualdades sociais no Brasil atualmente?
É o caráter extremamente atual da escrita de Carolina Maria de Jesus que faz com que possamos compreender sua obra literária como indispensável, hoje, na luta antirracista. E esse é um dos principais motivos pelos quais ela recebeu, no dia 25 de fevereiro deste ano de 2021, o título de Doutora Honoris Causa, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ou seja, Carolina Maria de Jesus é doutora pela UFRJ por causa de sua honra!
Carolina Maria de Jesus enfrentou inúmeros obstáculos para se tornar escritora e, por isso, ser reconhecida pelo título de doutora é uma forma de reparação simbólica muito importante. Nos últimos seis anos, foi tema de 58 teses e dissertações, segundo o portal de publicações acadêmicas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). No entanto, o reconhecimento oficial da sua produção intelectual por uma instituição universitária não chegou a tempo de poder ser desfrutado por ela, pois faleceu em 1977. O que queremos, então, é que muitas outras Carolinas de hoje tornem-se doutoras e possam desfrutar de todos os privilégios desse reconhecimento intelectual ainda em vida!
Referências:
[Livro] Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2014 (Carolina Maria de Jesus).
[Foto] A escritora Carolina Maria de Jesus com um de seus diários, ca 1960. Acervo Museu da Imagem e do Som de São Paulo. (autoria não identificada). Disponível em: https://twitter.com/mis_sp/status/970719311718383618
Saiba mais:
[Biografia] Vida por escrito – Portal biobibliográfico de Carolina Maria de Jesus: https://www.vidaporescrito.com/
[Reportagem] Bitita é doutora – UFRJ concede título de Doutora Honoris Causa à escritora Carolina Maria de Jesus: https://conexao.ufrj.br/2021/02/25/bitita-e-doutora/
[Reportagem] Consuni aprova título de Doutora Honoris Causa a Carolina Maria de Jesus: http://www.cfch.ufrj.br/index.php/27-noticias/1415-consuni-aprova-titulo-de-doutora-honoris-causa-a-carolina-maria-de-jesus
[Parecer] Parecer da Comissão Acadêmica CFCH sobre o título de Doutora Honoris Causa a Carolina Maria de Jesus: http://www.cfch.ufrj.br/images/parecer_comissao_academica_cfch_honoris_causa_carolina_de_jesus
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